Blog do Raul

Centro Histórico

Chamava o Centro de “Cidade”

Rua XV de Novembro, sem vivalma, às 16h50 de 23/08. Foto: Fernando Valle

A vocação de Santos e da região para o turismo conta com as praias, como atrações principais, o Parque Estadual da Serra do Mar, muralha natural dos seus limites territoriais, e desperdiça os seus valores patrimoniais históricos centrais, onde aprendemos mais sobre as nossas formações urbanas. Quando cheguei a Baixada Santista, há 51 anos, e ainda menino fui trabalhar no centro histórico de Santos, acostumei-me a me referir ao lugar como “Cidade”.

Faz tempo que não ouço essa referência nativa, mas inadvertidamente digo que vou à “Cidade” resolver alguma coisa e percebo que não me faço entender. Porém acho curioso que os desentendidos nem questionam essa referência, porque sabem do meu apreço pelas ruas e edificações históricas e tradicionais do Centro, que sempre me impulsionam fotografar sob ângulos novos, descobertos de passagem, por curiosidade ou tristeza diante do estado de deterioração do patrimônio cultural material de Santos.

Não sabia que 16 de agosto fora escolhido em 2000, como o Dia do Centro de Santos. O motivo é porque houve um jornal local, O Comercial, que circulou pela primeira vez nessa mesma data em 1857. Aliás, bem apropriada, para exibir que a indução da cidade ao desenvolvimento do comércio, porto, café, trabalho e serviços, sempre foi marcada por laços importantes, representados por veículos de imprensa, porta-vozes de uma comunidade multicultural e mobilizada.

Me aproveito desse contexto para provocar uma reflexão sobre o que temos feito para reconhecer, recuperar, proteger, manter e conservar os traços que justificam a nossa formação cultural e o orgulho da tal santisticidade, cantada em prosa e verso pelos escritores e poetas Nelson Salasar Marques e Flávio Viegas Amoreira e recentemente reconhecida inclusive pelo atual prefeito Rogério Santos.

Certa vez, Salasar Marques escreveu que “toda a última sexta-feira do mês me pego caminhando pelo centro da velha Santos à procura de alguma coisa. É como dizia este genial T.S. Elliot, ‘… indo ao mesmo lugar e vendo o lugar sempre pela primeira vez’. Essa parece ser a grande sabedoria. É como se alguma coisa que venho procurando, estivesse ali enterrada, naquelas ruas e becos que parecem contemplar os passantes com madura e compreensiva sabedoria. Porque os prédios falam uma língua de pedra que a poucos é dado compreender.”

Agora fui questionado sobre caminhos para a “Cidade”, que no começo das tardes parece esvaziada de gente, com portas cerradas de atividades e perspectivas. Em todo o mundo, exemplos de edificações históricas com novos usos são achados e, desde a década de 1930, houve um incentivo à utilização diferente dos originais, confirmando as doutrinas de restauro da época. Na Europa, a revitalização de construções históricas é crescente, sem improvisos e desvios.

Desde 2003, Santos conta com programas de requalificação da região central histórica, no “Alegra Centro”, redimensionados e atualizados também por leis municipais em 2019, definindo diretrizes para o uso e ocupação do solo, além de dispor sobre os elementos que compõem a paisagem urbana, fixando normas, padrões e incentivos fiscais. A “Cidade” em ruínas não pode ser só porto.

Carece envolver os três entes federativos – município, Estado e União. Nossa “Cidade” possui essas interfaces, com propriedades e posses de prédios e serviços nessa região. E é certo que uma atuação forte na conservação da memória, tonificará o ânimo social, o turismo, a economia, valorizará o mercado imobiliário, melhorará o desempenho dos equipamentos e instalações em geral, com redução de custos e garantia de segurança e conforto para todos que os desejam perenes e úteis.

Publicado na Plataforma do “Jornal da Orla”, em 23/08/2022.

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Mulher combina com Poesia

Cartaz do espetáculo Mulheres Poetas – outono de 2019.

Não é preciso ser poeta neste mundo para tentar conquistar o coração de uma mulher com palavras. Quando buscamos no Google a combinação de seduzir uma mulher pela poesia achamos as melhores receitas. Mas é bom que se diga que vale também o inverso e digo com o testemunho de quem foi tocado assistindo ao espetáculo cênico de poemas e prosas “Mulheres Poetas – Raízes Portuguesas”, protagonizado pela poeta e atriz Orleyd Faya.

Foi nesse outono, em Santos, no palco do teatro do Centro Português – Teatro Armênio Mendes, restaurado na parte histórica da cidade, que a multivoz e a expressão corporal de Orleyd refizeram o “Périplo Africano” – das grandes viagens marítimas, em que Portugal foi o primeiro país europeu a se aventurar – no navio da poesia.

Nesse “Périplo”, que alcança as Índias fundeando o Brasil e contornando a África, os poemas ditos por Orleyd emocionam do começo ao fim. Os textos foram pinçados no universo da produção feminina na literatura, com a influência portuguesa na escrita de mulheres poetas de Portugal e de suas ex-colônias, enfatizando os contextos histórico, político, social e cultural dos diversos países de língua portuguesa.

Diferente de um sarau poético onde são compartilhadas as participações de poetas e suas próprias vozes, “Mulheres Poetas” é muito mais do que um sarau, jogral ou monólogo, recursos comuns na teatralização da poesia. O espetáculo nos seduz embalado pelo repertório de instrumentos e sons variados pelo ator e músico Wagner Bastos justaposto nessa realização da Teatraria e direção geral de Tanah Correa – ator, produtor e principalmente diretor de inúmeras peças, filmes e novelas.

“Mulheres Poetas” decora o palco com “linhas de união de um conjunto de países, em diversos continentes, diferentes e ao mesmo tempo marcados por uma mesma cultura pátria, e colônias, que apesar de todas as diferenças culturais, sociais e geográficas encontram na língua um eixo comum que evidencia e conta sua história: lutas e conquistas de povos distintos, desnudados na sensibilidade feminina, nas vozes de meninas, irmãs, mães, esposas, amantes, senhoras e escravas”.

São 17 poetas de 11 países – Brasil – Laura Moreira, Adélia Prado, Cora Coralina, Hilda Hilst, Dora Ferreira da Silva, Patrícia Galvão (Pagu), Olga Benário; Portugal – Florbela Espanca; Angola – Alda Lara; São Tomé e Príncipe – Conceição Lima; Moçambique – Noémia de Souza; Cabo Verde – Yolanda Marazzo; Nova Guiné – Filomena  Embaló; Guiné Bissau – Odete Semedo; Gôa/Índia – Vimala Devi; Macau/China – Si Luosha e Timor Leste – Filomena Reis.

Mulheres diferentes na geografia, tempo-espaço, e que através da poesia revelam tanto em comum, escritas na língua portuguesa, sua relação com Portugal. Nesse espetáculo perceberemos mulheres que desde o século XV e, ainda hoje, lutam para ter sua voz na sociedade, no mundo da literatura, espaço sempre tão masculino. Mulheres que pariram, embalaram, alimentaram, amaram e que foram propriedade destes homens portugueses e de seus colonizados.

Recomendo “Mulheres Poetas – Raízes Portuguesas”, um revival à poesia falada e às viagens que a literatura nos aproximam: “O mundo? O que é o mundo, ó meu Amor? O jardim dos meus versos todo em flor… a seara dos teus beijos, pão bendito… Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços… São os teus braços dentro dos meus braços, Via Láctea fechando o Infinito” (Florbela Espanca).

 

(*) Raul Christiano é professor universitário, poeta, escritor e jornalista. E-mail: [email protected]

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