Blog do Raul

Poeta Narciso afinou o coro dos contentes

Perto de ganhar mais um ano para nossas vidas, o poeta santista Narciso de Andrade resolveu "desafinar o coro dos contentes", na antevéspera de 2008, para reviver seus felizes encontros e não parecer piégas diante de todos nós. Gostei silenciosamente do Narciso, admirava as suas crônicas e os poemas que somente ele conseguia publicar na Tribuna nos anos oitenta e noventa. Testemunhei poetas da cidade torcendo o nariz por causa desse privilégio, mas não os culpo, há muitos invejosos entre nós, mas não é por mal. Acho mesmo que Narciso foi para Pasárgada, embora sempre parecesse feliz aqui, porque lá a "existência é uma aventura, andará de bicicleta e tomará banhos de mar".

Conheci Narciso de Andrade através do seu amigo poeta, jornalista e meu professor de redação Roldão Mendes Rosa, em 1979, na porta do Restaurante Pop da Praça Independência, no Gonzaga. Noite sim e noite seguinte também era comum encontrar os dois conversando e rindo por ali. Haja assunto! Porque os encontrava, quase que religiosamente, por volta das cinco da tarde (por ironia no mesmo horário dos chás da Academia Brasileira de Letras), numa mesa quase penúltima do Café Paulista, no centro de Santos.

Roldão escapava do jornal A Tribuna para um café e encontrava Narciso, Dario Gonçalves e Jaime Caldas na esquina da rua do Comércio, com a Praça Ruy Barbosa, na porta do Café Paulista. Estavam sempre conversando e rindo muito. Aliás, essa é a imagem gravada na minha memória, de toda essa turma. Lí na matéria de A Tribuna, contando sobre o seu adeus (intitulada "Morre Narciso de Andrade, o poeta dos ventos e das Maresias"), o comentário do jornalista Clóvis Galvão, que reflete fielmente esse retrato da minha lembrança: "Narciso e Roldão, a dupla voltou a se reunir. Santos provavelmente nunca mais verá coisa igual, em qualidade e afinidade".

Sinto-me recompensado pela oportunidade dessa convivência tão ligeira, que me recordo de três passagens significativas para mim: a primeira, quando havia criado o Grupo Picaré de literatura e arte, Roldão sugeriu que eu lesse os poemas de Mário Sérgio (filho de Narciso), excelentes.

A segunda, quando Roldão e eu debatemos pelas páginas do jornal A Tribuna sobre a qualidade da produção poética local da época, e Narciso nos encontrou conversando no Gonzaga e se colocou à disposição para "apartar a nossa briga"; e a terceira, no dia da estréia da seleção brasileira na Copa de Futebol de 1986. Chovia e a televisão da casa da minha primeira sogra queimou. Saí em direção ao Gonzaga para comprar um novo aparelho. Não quis esperar pela entrega, carregando a tv fora da caixa pelas ruas até avistar a dupla Narciso e Roldão… Ambos "perdiam um amigo, mas não deixavam escapar a piada". Gritaram, rindo, combinados: pega ladrão de televisão! Saudade das gargalhadas que nem me lembro mais do resultado do Brasil.

Por fim, Roldão se foi e testemunhei Narciso e tantos outros amigos inconsoláveis. Nessa época mesclava a militância poética-cultural com a política partidária, quando deparei com uma entrevista de Narciso sobre a literatura regional e a nova geração de poetas, registrando uma palhinha a meu respeito:

"A primeira coisa que eles fazem é publicar o livro. A segunda é publicar o livro. A terceira é publicar o livro. Depois vão ser assessores de ministros. Como o Raul Christiano Sanchez. Ele era bom, estava começando bem. O Raul era o cabeça do movimento Picaré. Foi uma turma boa, uma turma que movimentou, que agitou a Cidade, que pôs em foco a criação literária, que não se cogitava há muito tempo em Santos. Eu tenho muito respeito por essa turma. Esse é o movimento mais recente da poesia em Santos. O Picaré, de mais ou menos 20 anos atrás. (…)" (A Tribuna de Santos, 07/02/2000).

Depois desse "encontro", revi Narciso no lançamento de seu livro intitulado "Poesia Sempre", em dezembro de 2006. Não estava em Santos no momento do seu embarque para Pasárgada, agora, "com tanto navio para partir, minha saudade não sabe onde embarcar…"

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7 comentários em “Poeta Narciso afinou o coro dos contentes”

  1. Raul querido, que comentário sensível, Ã altura do apaixonado Narciso. Você descreveu tudo muito bem, com as lembranças que moram no coração da gente. Eu estava na Tribuna naquela metade dos anos 80 e início dos 90. Era no AT, o caderno que Ivani Cardoso editava e onde eu era repórter especial. Nas nossas mãos chegavam as crônicas do poeta, que por vezes entrava naquela redação como quem entra na casa que lhe pertence. Tenho dele, aqui em casa, um poema que fez para mim, com o nome “Os olhos de Vera”. O Seri fez uma das suas inspiradas ilustrações, juntamos os versos do poeta e coloquei tudo em uma moldura azul, como azul deve ter sido o tapete que o levou ao reencontro com seus pares, nesse reino que é de poucos.

  2. ADEMIR PESTANA

    ADEUS, DE ANDRADE NARCISO

    De Andrade, Narciso. A anteposição é necessária para assegurar que ele, ao contrário de entorpecer-se pelo brilho de si mesmo, via o todo, via o globo, via o porto e a praia que cantava em versos.Traduzindo, em armações gramaticais, sua extrema lucidez e sensibilidade, tão difíceis e equilibrarem-se em nosso universo conturbado que ele sempre encarou com sensatez. Era o poeta e não um poeta, militante genial as causas comuins que poucos compreendem . Sua escrita sobre o cinéfilo Maurice quando de sua partida para a eternidade e para o espaço que retorna omo areia e mar, e 1997 – Maurice não briga mais – é uma majestosa construção de memória e prova de sua existência consoante e presente ao lado deste francês malcriado, do Roldão Mendes Rosa, do Serafim Gonzalez e de tantos como Hamilton e Plínio na história do cinema de arte e da cultura libertária renascida no pós-guerra. No espírito que sobrevive com Miro, Luiz Garcia, Juraci e tantos artistas. Tem sentido de vida sua descrição da ausência súbita deste nosso Maurice, para sossego geral dos comandantes militares da região e das ligas cívicas das senhoras católicas. Narciso de Andrade veio de passaem neste porto que ele confessa ser seu eu em um poema de alma marinha e cheiro de carga. Basta olhar para vê-lo neste cenário. Que permaneça no ar sua poesia sábia e consistente de amor eterno e ardente as causas sociais desta Santos de todos os cantos recantos. Adeus!

    Ademir Pestana – vereador PSB
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  3. Tive a felicidade(aqui a palavra associada ao riso)de conviver uma época da minha vida na casa do Narciso.Amigo e colega de banco escolar do Mário,frequentava o alto porão da rua Borges,era um porão em que se misturava,livros,varas de pesca,peças antigas,e algum mistério que cultuavamos na nossa mente juvenil.Lembro das inúmeras vezes,que o poeta lia um novo poema e perguntava”gostou Mário”e sempre com a resposta positiva de seu maior admirador,retrucava o poeta,”esse menino vai longe”.Foi um privilégio!!!

  4. ANDRÉ CAETANO

    Caro Raul – recebi seu e-mail e já havia lido a sua feliz homenagem ao Narciso de Andrade, poeta do Mundo.
    Acho que ele também foi professor/educador – pois ensinava como amar Santos.
    Pena ele ter ido prá outro lugar, mas ficará aqui, para as próximas gerações, tudo que ele sonhava, escrevendo…

  5. …Quando parte um poeta, seja das letras, seja das lentes, seja de outra qualquer forma de arte, o mundo fica mais triste. Pois aos poetas foi dada a sensibilidade de ver as coisas como realmente são: simples, puras e profundas, pois o que é simples contém a filosofia da vida. Quando passo pela praça Narciso de Andrade, na Vila Mathias, uma homenagem se não me engano, ao pai do poeta, sempre lembro no mínimo de duas coisas: a querida Escola Cesário Bastos e o poeta Narciso de Andrade. Como lembrou Raul, agora ele está em Pasárgada, ao lado de Bandeira e tantos outros poetas; tomando banhos de mar, subindo em paus de sebo, namorando prostituas bonitas. Que seria da vida sem a música, a poesia? Foi dado aos poetas a tarefa de amenizar nossas agruras, do dia-a-dia, da política, da economia capitalista, do individualismo tão cultivado nos dias de hoje. Abraços ao meu querido Bardo Bandeira, Poeta Narciso…Agora vc. também é amigo do Rei! Abs.

  6. Em 1995, quando lancei meu livro ”Raul Soares, Um Navio tatuado em Nós”, Narciso de Andrade publicou em A Tribuna (no AT Especial) uma crônica para mim e meu livro, intitulada ”A Dolorosa Tatuagem”. Foi uma delicadeza sem tamanho, que republiquei em meu blog (http://lidiamaria.melo.zip.net), assim que soube de sua morte.
    Tenho certeza de que Narciso de Andrade deve estar caminhando na beira do mar, chutando as ondas, calmamente, ou perambulando pelo cais do porto, na companhia de ninguém mais do que Roldão Mendes Rosa, outro poeta que amou Santos como o amigo Narciso e foi nosso professor. Bem-aventurados os homens inteligentes, mas, antes de tudo, sensíveis.

  7. Prezado Raul,

    Conheço-o da época em que estudou no Colégio Primo Ferreira. Por um tempo segui sua carreira política, mas o que me leva a postar este comentário é o fato de ter conhecido Narciso de Andrade e que hoje eu fazendo um curso pela PMS- Cultura estou tendo oportunidade de saber um pouco mais sobre vida e obra. Me enterneceu a palavras carinhosas e sensiveis que vc se refere ao Poeta Jornalista.

    Abraços

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